Escrevi essa matéria para o informativo Expressarte no ano passado, mas o jornal foi encerrado antes de ser publicada a matéria. Uma pena, porque era um excelente jornal voltado às artes e com grande foco em Salto, uma iniciativa sem fins lucrativos e coordenada por apenas duas pessoas e com ajuda de um circuito de amigos. Todos ficamos contentes quando o Expressarte foi "comprado" por um grande jornal local e achamos que isso ampliaria o alcance das informações mas, esquecemos um detalhe, ARTE NÃO DÁ DINHEIRO. O jornal Estancia comprou o Expressarte apenas para fechá-lo, pelo que entendi.
Em setembro, acabei fornecendo essa matéria para a Daniele, repórter do jornal dae circulação interna da CEUNSP, chamado Arauto. Um informativo também interessante, mais focado nas atividades dos estudantes da universidade, mas com assuntos diversificados. Adivinha o que aconteceu? Fecharam o jornal também.
Vou publicar a matéria aqui no blog mesmo pois o assunto não poderia ser mais justo para o Dia da Consciência Negra. Nãos e trata de uma batalha travada por quilombolas com facões, mas uma vitoriosa guerra travada por rockers com suas guitarras contra a discriminação racial no país mais racista do mundo, os EUA.
QUEBRANDO BARREIRAS
“A minha música quebrou as barreiras raciais!”
Little Richard
Que o rock sempre acompanhou as mudanças sociais na forma de hinos revolucionários juvenis, todos sabemos. O que pouca gente sabe é que o rock ´n roll foi o fator determinante de uma das mais importantes revoluções do comportamento humano, levando ao fim da segregação racial entre negros e brancos antes que as políticas governamentais o fizessem.
Na década de 50, os EUA viviam uma realidade paradoxal. O país havia saído de uma guerra mundial em que lutou contra o totalitarismo e a perseguição racial, mas, dentro de suas próprias fronteiras, os negros não podiam sequer compartilhar o assento de um ônibus com um branco ou freqüentar os mesmos ambientes sociais. A situação econômica nacional havia melhorado consideravelmente no pós-guerra, mas os bolsões de pobreza estavam ainda mais destacados nas regiões agrícolas do Sul.
São nas situações mais adversas que o povo dá o melhor de si. A chama da esperança e até mesmo a depressão da miséria sempre renderam boa música nos EUA. Nesse clima de pobreza das comunidades negras nasceram todos os melhores ritmos da música universal. Do blues da lavoura de algodão sulista ao rhythm and blues de Chicago, passando pelo jazz das colônias francesas, desde a década de 20 ou até antes, foi com os sentimentos dos negros que o povo norte-americano aprendeu a sentir suas próprias emoções desde o século 19.
Porém, se a indústria fonográfica estava pronta para a música negra desde aquela década, a sociedade anglo-saxã norte-americana não esteve pronta para essa integração até os anos 60. Os discos de música negra eram intitulados “race records” e só eram comercializados e tocados na própria comunidade ou em rádios especializadas. Ouvir música negra era um tabu.
Quando chegou a década de 40, os negros inventaram o rock´n roll. Ele não tinha ainda esse nome, nem essa cara de que nos lembramos, mas vivia e pulsava. Era conhecido como rhythm and blues, boogie-woogie, jump blues. Ele já tinha a guitarra elétrica, com riffs acelerados em relação aos acordes do blues, com leves distorções e apresentações performáticas que ficariam famosas através dos intérpretes brancos na década seguinte. Mas essa música ainda era discriminada, marginalizada, considerada selvagem, aviltante, e banida das rádios mainstream.
Na década de 50 a situação começou a mudar. Sam Phillips, branco, sulista e filho de fazendeiro, cresceu nos anos da Grande Depressão ouvindo o blues e o country blues das lavouras de algodão. Se não fossem os manejos do destino, talvez hoje não conhecêssemos a boa música, pois foi a morte de seu pai que o tirou do colégio para trabalhar e sustentar sua família. O rapaz que antes queria estudar Direito, então se apaixonou pela música e pela locução, formando-se técnico de som e trabalhando em estações de rádio no Alabama e no Tennessee. Em Memphis ele conheceu a música produzida nas esquinas de Beale Street e realmente se apaixonou. Phillips dizia que “a música move a alma”. Também o moveu à sua realização, ao fundar em 1950 a Memphis Recording Service, gérmen do que viria a ser a Sun Records.
Phillips sempre evidenciou que a música por ele produzida, gravada e divulgada, causou uma verdadeira revolução emocional na sociedade norte-americana que precedeu à revolução social. “A música negra do Sul e a música branca do Sul, que conseguimos criar na Sun Records, com Elvis Presley como catalisador e os artistas negros fantásticos que eu havia gravado antes, isso mudou o mundo e o conceito não só da música, mas o que pensamos de nossos semelhantes”. Ele foi o grande encorajador das comunicações entre pessoas de diferentes raças e maior responsável pela quebra das barreiras entre a música branca e a negra, misturando country com blues, o ritmo e a sensualidade da música negra com a melodia e progressão de acordes da música branca, criando o gênero que hoje chamamos simplesmente de rock. Phillips não só deu vida a uma forma de arte, mas presenteou o mundo com uma nova cultura e comportamento social.
Enquanto alguns sonhavam, o rock fazia...
Antes de Martin Luther King ter um sonho com o fim da segregação racial, Sam Phillips concretizava a integração racial ao lançar fabulosos discos de artistas negros como B.B. King e Howlin´Wolf junto a discos de Elvis Presley, Carl Perkins, Johnny Cash e Jerry Lee Lewis. Outras gravadoras o precederam e o seguiram no novo ritmo, mas estas sempre lidavam com casts exclusivamente negros ou brancos, sempre separados.
Com a explosão de Elvis Presley nos anos 50, a revolução de costumes nos Estados Unidos e em todo o mundo encaminhou-se à gloriosa redenção final dos povos. Não se tratava apenas de um fenômeno musical, mas seu visual de cabelos louros pintados de preto, seu topete e costeletas, seu modo de se vestir, criaram um estilo totalmente novo, uma tendência de comportamento social que alterou todo o curso da história através da arte. Perseguido pelos críticos e políticos conservadores, o caminhoneiro bonitão não teve dificuldade em levar à juventude seu comportamento rebelde e desafiador. As garotas queriam Elvis e os garotos imitavam seu estilo de vida.
Enquanto os mais puristas discutem se o título de criador do rock pertence a Jackie Breston, Wynonie Harris ou Bill Haley, o fato é que apenas através de Elvis ele atingiu o mundo todo. Em que pese Elvis ter sido apenas um intérprete e não um compositor, a ele devemos a verdadeira revolução musical e social conhecida com rock´n roll. Chuck Berry e Little Richard conseguiam misturar brancos e negros nos shows, mas é apenas a Elvis devemos a graça de ter levado a música negra para dentro dos lares brancos através de seus discos e influências.
Naquela época, músicos negros tocavam em teatros cuja platéia era dividida por raças, sendo que os brancos ficavam nos camarotes e os negros embaixo. Carl Perkins conversava com Chuck Berry certa vez e ele lhe disse, com toda razão, que a música que produziam podia estar fazendo tanto ou mais pela quebra das barreiras sociais que as ações dos líderes políticos em Washington. Little Richard também afirma que sua música contribuiu para a quebra das barreiras raciais, pois os brancos pulavam de seus camarotes e desciam e se misturavam ao público negro: “a música não tem fronteiras raciais”. Este grande artista derrubou preconceitos inimagináveis na sua década, pois além de negro era declaradamente homossexual, tocando e sendo adorado por jovens brancos protestantes antes mesmo dos movimentos sessentistas e setentistas clamarem pelo respeito às raças e opções sexuais. Mas todas essas estrelas são unânimes ao afirmar que apenas Elvis conseguiu levar isto ao mundo.
Apenas em 1968, com a promulgação da Lei de Direitos Civis norte-americana, irmãos negros e brancos puderam se sentar juntos nos assentos de ônibus. Mas nesse momento, a vida apenas estava imitando a arte. Bem antes dos congressistas, os deuses do rock´n roll permitiram que negros e brancos dançassem juntos e lhes mostraram que a cor da pele não pode separar o que a alma une.